segunda-feira, 8 de novembro de 2010

A sobrevivente.

Com uma pequena trouxa de tecido velho e imundo às costas, trago comigo somente o indispensável para a sobrevivência. Acompanhada somente desse item e de uma alma povoada de sonhos e esperanças é que volto ao local onde nasci.

Será que é do ser humano a vontade de voltar às suas origens para contemplar, ao menos por uma segunda vez na vida, sua terra natal? Depois de tanto caminhar, de conhecer pessoas, cidades, civilizações intrigantes e desconhecidas, nosso destino será procurar o caminho de volta pra casa?

Lembro-me, como se fosse ontem – e com uma nitidez apavorante, a invasão e destruição de tudo que me era mais querido. Mas a destruição por si só não é má, já que é o destino de tudo que vive; maldade é a humilhação, a tortura, o aniquilamento do sagrado. Assisti escondida no oco da árvore que agora vejo enegrecida à minha frente, ao estupro e sequestro das mulheres da aldeia, ao aleijamento de homens e animais e sua agonizante e lenta morte.

Transida de medo, não sei por quantas horas, dias, permaneci estática no mesmo lugar tendo somente o gosto de minhas lágrimas salgadas por companhia agradável. Lembro-me bem de que a dor, a saudade e o medo são vencidos pelo instinto de sobrevivência – e foi por ele que saí de meu esconderijo e embrenhei pela pequena floresta ali perto em busca de algo, qualquer coisa que pudesse alimentar meu sonoro estômago.

Passado algum tempo, aquela vida em que a vida era somente a contemplação da morte, decidi me afastar dali e fazer uso, finalmente do que a Natureza me ofereceu de mais útil: a arte da observação. Foi assim, que com esse dom, repassei mentalmente as horas em que escondida com outras meninas, espiava as aulas de lutas destinadas somente aos homens e meninos.

E treinando pelas noites estreladas ou desprovidas de qualquer outra luz, assim segui caminho, sempre sobrevivendo, até chegar a uma pequena cidade. Ao reflexo de um espelho de metal quase não me reconheci. Quatro anos haviam passado, e ali estava a minha nova imagem, a nova Yin Chang, uma mulher de dezesseis anos coberta com andrajos.

Mesmo em tão penosa apresentação, homens se reuniam a minha volta para admirar meu rosto e meu corpo. Instintivamente, recordei-me de algo não muito definido, de alguma imagem já vista e talvez presenciada antes. Por isso, saquei minhas espadas de encontro ao pescoço do mais ousado que se atrevera a quase tocar em minha roupa. Um espanto geral, quase cômico tomou conta daquelas caras lascivas e brutas. Seguiu-se uma luta desigual, a cada minuto acompanhada por mais pessoas a observar – sem se comprometer a um ferimento sangrento – aquele espetáculo curioso.

Alguns homens cansados e outros feridos e também cansados aplacaram sua fúria e foram, um a um, se afastando da contenda. Só me dei conta de que ainda conseguia respirar depois que tudo se acalmou. Olhares atônitos grudados em mim, dessa vez com uma expressão de espanto e até certo respeito. A partir de então minha vida errante tinha dado uma trégua, e fui contratada como segurança por uma nobre daquela pequena cidade.

Minha habilidade na luta levou-me a certo prestígio, e nunca faltavam torneios, vitórias e dinheiro. Mas meu espírito inquieto clamou por liberdade, e numa noite de lua cheia fugi para longe.

Caminhei dias e noites insone, cada vez mais aliviada de estar longe de um grande aglomerado humano. Vez ou outra vivia algum tempo n’alguma perdida província chinesa. Por quase vinte anos pude observar e estudar o comportamento das pessoas, e a cada nova descoberta, a cada surpresa em suas relações, um enorme desgosto nascia.

Agora necessitava de paz, de ermo, de encontro com minhas saudades e solidões. A velhice caminhava célere ao meu encontro e com ela, lembranças quase perdidas de uma infância que foi simples, feliz e trágica em poucos segundos.

Por isso regressei. À vista da aldeia assombrada e cheia de escombros de um passado que foi vivo, senti novamente o gosto salgado em minha boca, a marcar, agora, a cara vincada de sinais dos anos de aventura e vazio. Somente agora o coração parecia se encher de sangue, a vida a voltar lentamente para este corpo cansado e não tão ágil como antigamente.

Mas a vida sempre impera. Por mais solidão ou encontros que se tenha, a vida urge a ser vivida, e mais uma vez dali parti para uma viagem desconhecida. Uma viagem que certamente teria seu ponto final neste lugar, como se sempre buscássemos o conhecido, o remoído – nosso passado – mesmo que isso seja reviver o inferno pra tocar em frente.

Um comentário:

  1. Confesso que me surpreendi bastante com a primeira leitura: por que esse contexto exótico? Por que essa temática?
    De qualquer maneira foi uma ótima surpresa! Achei a narrativa madura e envolvente.

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